Por Joana Patacas, em 23 de março de 2024*
Desdobrando botões e foles do seu acordeão, Inês Vaz harmoniza melodias onde o tradicional se entrelaça com o erudito, criando uma paisagem sonora que transcende fronteiras, fundindo influências diversas numa expressão única que desafia as convenções.
Acordeonista de reconhecido talento, a sua carreira musical é fruto de um compromisso profundo com a arte, iniciado aos seis anos de idade. A sua mestria abrange diversos estilos, mas é na música clássica e de câmara que encontra o seu mais elevado expoente.
Após o sucesso de "Timeless Suite", o seu primeiro disco a solo lançado em 2021, Inês Vaz prepara-se agora para lançar “Pétala”, o seu segundo trabalho, que já foi pré-apresentado na Antena 2, e cujo lançamento está agendado para o início do mês de maio de 2024.
“A Inês lança uma pétala que quase conseguimos tatear entre os dedos. Sugere-nos uma viagem que nos implica a escapar tanto mais para dentro, enquanto navegamos o que é de fora. (…) Lança uma pétala: matéria frágil entre a aspereza dos dias. Convoca cor e forma, para logo de seguida a dissolver, como uma experiência que vivemos e somente a memória – essa frágil membrana de sensações – consegue amparar. Delicada e sensível esta forma de tecer pétalas com a ponta dos dedos, entre uma melodia que é sopro e fogo a esculpir emoções.” in Antena 2 (Ana Lázaro, 2024)
Nesta entrevista à ProART conduzida por Joana Patacas (JP), Inês Vaz partilha o seu itinerário musical e fala sobre o processo criativo por trás de "Pétala", revelando que a música atua como uma ponte para partes mais desconhecidas de nós mesmos que nos ajuda a superar alguns desafios inerentes à condição humana.
JP: Olá Inês. Conte-nos como foi o seu primeiro contacto com o acordeão. O que a cativou neste instrumento?
Inês: Comecei a tocar com seis anos. Na aldeia do meu pai, existia um acordeão muito velhinho com o qual estava sempre a brincar. Para além disso, era fã do Quim Barreiros – pelo que contam, andava sempre a cantar as músicas dele – e, quando os meus pais propuseram que aprendesse a tocar um instrumento, foi essa inspiração que me impulsionou a aprender acordeão (o único instrumento que queria tocar!).
JP: Então começou a estudar música muito cedo.
Inês: Sim. Com seis anos fui para a Escola de Música Semibreve, em Odivelas, onde tive aulas com o Professor José António Sousa. Na verdade, foi ele que me acompanhou sempre no estudo do acordeão, até acabar o ensino secundário. Ainda hoje é um grande amigo, e quase tudo o que sei sobre música, é a ele que o devo.
JP: Prosseguiu com a sua formação musical?
Inês: Apesar de nunca ter deixado de tocar, após terminar o 12º ano, entrei no curso de Ciências Farmacêuticas. Em 2011, após terminar o curso, e porque a música esteve sempre presente, decidi que seria essa a área preponderante e única da minha vida profissional. A vontade de explorar novos caminhos fez com que fosse estudar harmonia e improvisação com os Professores António Palma e Victor Prieto, e a par desse estudo, música de câmara, com o Professor Paulo Jorge Ferreira (acordeonista e compositor). Hoje em dia estudo bastante de forma independente, mas procuro sempre ter uma opinião externa dos meus Professores.
JP: A Inês considera-se uma acordeonista profissional, mas também dá aulas, não é?
Inês: Sim. Neste momento, dou aulas particulares, em formato online ou presencial. Vejo o ensino como uma troca, como uma relação recíproca, pois para mim também é um momento de aprendizagem. Talvez um dos pontos que mais gosto em dar aulas, é essa interação que permite uma troca de conhecimentos e experiências, o que me leva a refletir acerca da importância do lado humano neste processo. O erro, por exemplo, uma preocupação constante dos alunos, não deixa também de ser uma preocupação transversal aos músicos. Reconhecer que a sua existência faz parte não só da aprendizagem mas também de todo um percurso musical, é fundamental. Esta dinâmica é muito interessante pois coloca-nos no mesmo patamar, evitando a tradicional relação de superioridade do professor perante o aluno. Desmistificar esta ideia é crucial, obviamente, não menosprezando um elevado grau de exigência. Esta é a minha visão sobre o ensino, reforçada pela diversidade dos meus alunos, que são de todas as faixas etárias. Gosto da ideia de que a música pode ser acessível a todos, reconhecendo a individualidade de cada aluno e a respetiva forma como pretende que a música seja integrada na sua vida.
JP: Voltando à sua carreira como acordeonista. Desde cedo que foi distinguida com vários prémios, tanto a solo como a nível de música de câmara. Foi importante para a sua carreira ter este tipo de reconhecimento?
Inês: Confesso que hoje em dia dou pouca importância aos prémios. Não consigo pensar na música como uma competição. Não quero com isto dizer que não reconheça que há alguns prémios que podem catapultar a carreira de um músico. Mas falando da minha experiência, o que sinto é que foi algo que me trouxe uma grande capacidade de trabalho, organização e resiliência. Todo o trabalho que antecedia a preparação para um concurso era de tal forma intensivo e minucioso que nos levava para outro ponto. Tudo isso traz uma capacidade de estudo, talvez de outra forma inalcançável. Para mim esse é o lado importante da competição, o lado que realmente permanece até hoje.
JP: E quais são as suas maiores influências?
Inês: A minha formação musical foi muito centrada na música clássica e contemporânea, pelo que não posso deixar de referir os professores que me marcaram, o Professor José António Sousa, e, mais tarde, o Professor Paulo Jorge Ferreira, um dos responsáveis por uma grande abertura do instrumento a “outros” espetros, que hoje em dia vai ganhando cada vez mais espaço. Para além disso, ouço muita música, são muitas as influências! Mas sou fascinada por bandas sonoras, por aquela ideia de existir uma história que está a ser contada. Por mais que procure outros compositores, volto sempre ao Alberto Iglesias, compositor de grande parte das bandas sonoras dos filmes de Pedro Almodóvar. Fora das bandas sonoras, posso referir mais alguns aos quais regresso sempre, como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Avishai Cohen, Brad Mehldau, Chick Corea, Bill Evans, Vicente Amigo, Philip Glass, Gustav Mahler, Camille Saint-Saens, e tantos outros que teriam direito a este mesmo destaque.
JP: A abrangência também é uma das características que atribuem ao seu trabalho.
Inês: Embora o meu foco seja a música clássica e contemporânea, por vezes sinto
necessidade de ter projetos com sonoridades diferentes. Talvez esse gosto por ouvir muita música, muito diferente entre si, me leve também a gostar de alguma variabilidade quando toco.
JP: Isso reflete-se na variedade de projetos em que participa? Fez parte de bandas como Donna Maria, mas também no dueto instrumental Ciranda ou no Quinteto Velvet, todos eles com estilos muito distintos.
Inês: Sem dúvida. Todos os projetos em que me envolvi, assim como as pessoas integrantes, foram uma influência para o que sou hoje enquanto músico e até enquanto pessoa. Para além de todos os momentos musicais partilhados, há também várias relações de amizade que permanecem. Com 17 anos toquei pela primeira vez de forma profissional com Donna Maria (nesse primeiro concerto, apenas para fazer uma substituição), mas depois acabei por integrar o projeto, algo até hoje muito significativo e especial para mim, uma vez que me permitiu manter uma ligação à música mesmo durante o curso de Ciências Farmacêuticas. Todo este caminho de projetos e influências diferentes, acabou por culminar na gravação do meu primeiro trabalho a solo, “Timeless Suite”.
JP: Atualmente, ainda faz parte de algum desses projetos?
Inês: Sim. Até ao final do ano passado fiz parte do duo instrumental Ciranda, com o Gileno Santana (trompete). O Velvet Quintet (acordeão e quarteto de cordas) ainda está ativo, e mais recentemente tenho um projeto com o acordeonista Pedro Santos, o concerto “As Quatro Estações de Vivaldi”.
JP: Referiu há pouco o seu disco “Timeless Suíte”, editado em 2021. Foi a concretização de um sonho?
Inês: Considero um ponto preponderante do meu percurso, que acaba por ser bastante diferente do caminho habitual de um músico clássico, e também a concretização de um sonho, sem dúvida! Não foi um caminho estipulado, ou pensado de forma rigorosa, mas existia a ideia, que acabou por ser impulsionada por um amigo, José Rodrigues Cardoso, que foi também o responsável pela edição do disco, através da “Jugular Publishing”.
JP: Conte-nos como foi o processo criativo.
Inês: Neste primeiro disco, escolhi várias peças de compositores como Bach, Gismonti, Scarlatti, Beethoven, Rossini que tinha intenção de gravar, e compus duas peças originais. É aqui que o processo criativo surge, também impulsionado pelo José Cardoso, que me sugeriu, por exemplo, imaginar uma sala de espera e tudo o que ela pode evocar, daqui surgiu uma dessas peças, “Waiting Room”. Foi nesta altura que percebi que conseguia compor algo, embora confesse que para mim não é um processo imediato, apenas faz sentido quando alguma inspiração fica a vaguear, e sinto necessidade de tentar traduzi-la em música. É um processo que ocorre espontaneamente, no seu tempo, de forma quase inconsciente, simplesmente porque algo me tocou e acabou por permanecer.
JP: Pode desvendar alguns detalhes sobre o seu segundo disco a solo?
Inês: Este segundo álbum chama-se “Pétala”, título inspirado por um poema de Maria Teresa Horta que termina com “Pétala, após pétala, após pétala, até chegar a mim”, e que dá o mote inicial à narrativa que imaginei para o disco. Como se ao longo do mesmo, fosse descrita a viagem de uma pétala, no seu sentido metafórico. E essa pétala podemos ser nós, no mundo, ou quem sabe, cada uma das camadas do nosso mundo interior. Mas a viagem, será a que cada um quiser fazer ao ouvir o disco, “pétala, após pétala”. Quanto ao lançamento, se tudo correr bem, será no início de maio.
JP: Sente que tem contribuído para a desmistificação de que o acordeão é um instrumento predominantemente ligado à música popular?
Inês: O acordeão será sempre indissociável da música popular e da nossa tradição cultural. Não há dúvida que é uma presença assídua em todas as festas populares. E faz todo o sentido que essa essência seja preservada. Contudo, toda a riqueza de um instrumento como o acordeão é bem mais abrangente. Aos poucos vai ocupando o lugar de destaque a que realmente tem direito. É um instrumento cada vez mais aceite no universo da música clássica, contemporânea e de câmara, o que também reflete uma mudança de perceção entre músicos e compositores. Continuo, apesar de tudo a acreditar que há ainda um longo caminho a percorrer. Digo sempre que enquanto existirem pessoas que no fim de um concerto disserem que nunca tinham ouvido o acordeão daquela perspetiva, é porque ainda há algo a fazer! E espero sem dúvida dar o meu contributo para essa desmistificação.
JP: Quais são os seus planos para o futuro?
Inês: Nunca pensei o meu percurso de forma muito detalhada, apesar de saber para onde quero ir, e mais que isso, para onde não quero ir. Este segundo disco surge nesse sentido, no sentido de dar continuidade a um caminho que comecei a percorrer com o primeiro, e com o qual me sinto confortável. Por isso, os meus planos mais breves são de divulgar este segundo disco, e quem sabe, começar a pensar num próximo.
JP: Quer apostar numa carreira a solo?
Inês: É algo que aos poucos já faz parte, e sem dúvida que não existiriam dois discos a solo se não tivesse essa pretensão. Embora seja sempre essencial para mim, a par dessa carreira a solo, tocar com outros músicos e pensar noutros projetos. Por exemplo, este ano já tenho agendados vários concerto do projeto “As Quatro Estações” de Vivaldi.
JP: E o que faz uma acordeonista quando não está a tocar acordeão?
Inês: Gosto muito de ler. Ocupo grande parte do meu tempo livre a ler ou ver filmes. Mais recentemente, descobri uma paixão por fotografia. Claro, de vez em quando, também gosto de ir a um concerto ou ao teatro.
JP: Tem um conselho para os jovens músicos que estão agora a começar as suas carreiras?
Inês: Diria que é importante a capacidade de ouvir um não (ou vários) e ter paciência de perceber que é necessário percorrer um caminho difícil, muitas vezes longo para que no futuro as portas fechadas possam quem sabe, voltar a abrir-se. E estar ciente que ser músico implica quase sentirmo-nos reféns do nosso instrumento, ou da música em si. É algo que fará parte de nós sempre. Gosto de acreditar que o trabalho e todo o amor que nele colocarmos levará inequivocamente a um bom lugar!
JP: Por fim, diga-nos o que significa a música para si?
Inês: Essa é uma pergunta difícil, mas às vezes digo que a música é uma espécie de salvação. Acima de tudo, acredito que a música é um ponto de contacto com uma parte de nós talvez mais profunda e desconhecida. Através dela, conseguimos aceder a certas sensações e emoções que, em circunstâncias normais teríamos dificuldade em compreender ou lidar. Para mim, é uma relação de amor, de puro mistério, uma daquelas relações que apenas se sente, não se explica, e à qual nem precisamos de dar um nome!
Entrevista à acordeonista Inês Vaz originalmente publicada em www.proart.art.
* Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
Quer saber mais? Veja e ouça abaixo uma das suas belas apresentações:
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