Por Joana Patacas, em 09 de março de 2024*
Numa conversa íntima no largo do Teatro São Carlos, Cátia Moreso partilhou com a ProART o percurso inesperado que a levou a tornar-se uma das vozes mais respeitadas no panorama lírico nacional.
A música sempre esteve presente na sua vida, ainda que a ópera permanecesse um território desconhecido até mais tarde. A sua determinação e talento natural levaram-na a Londres, onde fez formação musical na Guildhall School of Music and Drama e enfrentou os desafios e a dura realidade para quem ambiciona uma carreira internacional.
Foi consolidando a sua carreira através de um variado repertório de ópera e como solista em concerto. Os seus horizontes artísticos expandiram-se verdadeiramente quando interpretou Azucena em "Il Trovatore", em 2023. Foi uma performance que mostrou, sem dúvida, a profundidade e maturidade da sua arte, merecendo os elogios da crítica:
“Confesso que foi uma surpresa agradabilíssima ouvir e ver Moreso agarrar um papel difícil, transfigurar-se como cantora-atriz e cortar a meta em triunfo.” in Expresso, 2023 (Jorge Calado).
Cátia Moreso foi uma Azucena de primeira categoria, tanto a nível vocal como dramático (…). O seu "Stride la vampa" foi apaixonado, com notas graves impressionantes, mas sem notas de peito ingratas." in ConcertoNet.com (Ossama el Naggar)
Nesta entrevista à ProART, conduzida por Joana Patacas (JP), contamos a história singular de Cátia Moreso, uma mulher que se encontrou a si mesma nos ecos da sua voz única, e que se destaca no canto lírico pela sua versatilidade vocal e força expressiva das suas interpretações.
JP: Olá, Cátia! É um prazer tê-la aqui para esta entrevista. Quando é que descobriu a sua paixão pelo canto?
Cátia Moreso: A minha mãe conta que quando nasci comecei logo a chorar e estive a berrar sem pausa durante duas horas e meia. Chorava sempre muito alto e com muita intensidade. Nasci com uma voz muito potente. Claro que os meus pais nunca imaginaram que eu ia encontrar a minha vocação no canto lírico. Era uma criança que gostava muito de cantar, mas nunca pensei que iria fazer disso a minha profissão. Embora o meu pai fosse um apaixonado pelo canto lírico – ouvia Pavarotti religiosamente –, naquela época, eu não me interessava por ópera. Íamos muito ao teatro e a museus, mas não íamos à ópera, por isso só muito mais tarde é que tive contacto com esse mundo. Também não havia músicos profissionais na minha família. Eu e a minha irmã Leila fomos as primeiras a estudar música. Ela canta no coro do São Carlos.
JP: Como é que a música esteve presente na sua infância?
Cátia Moreso: Quando éramos pequenas, convivíamos muito com uma prima do meu pai que tinha jeito para a música. Tocava piano e acordeão de ouvido e nós cantávamos e dançávamos. Mas a verdade é que, apesar dessa convivência, nunca lhe pedimos que nos ensinasse a tocar. Naquela altura, a música era mais um divertimento do que uma vocação a sério. Quando me perguntavam o que eu queria ser quando fosse grande eu dizia que queria ser veterinária. Nunca pensei seguir a via artística. A única vez que estive num palco foi na festa do final do ano letivo da 4ª classe. Deram-nos a oportunidade de escolher o que queríamos apresentar, e eu, empolgada, quis cantar a música «My Bonnie Lies over the Ocean», uma canção que cantava com a minha mãe em casa. Cantei à capella e lembro-me de me sentir muito tímida, mas não me deixei ir abaixo e atuei até ao fim. Foi a minha única experiência até entrar para o conservatório.
JP: Então não fez o percurso pelos coros e programas infantis?
Cátia Moreso: Não fiz esse percurso de estrelinha. Tal como muitas crianças da minha geração, adorava os Onda Choc, mas nunca pensei em fazer parte de um coro ou de uma banda. A minha mãe ainda insistiu para que eu aprendesse a tocar um instrumento, mas nunca quis. Hoje arrependo-me, e por isso o meu filho entrou no Conservatório Nacional de Lisboa com seis anos. A música, ou qualquer outro tipo de arte, abre-nos os horizontes e dá-nos mais sensibilidade. Eu não tive essa oportunidade e às vezes sinto-me em desvantagem, porque na realidade caí de paraquedas na música.
JP: E, no entanto, é uma grande cantora.
Cátia Moreso: Tenho o que se pode chamar um talento natural para o canto, mas não tive oportunidade de aprofundar os aspetos técnicos e teóricos como gostaria, como o poderia ter feito se tivesse descoberto esta minha paixão mais cedo. A verdade é que só descobri a música por volta dos 16 anos. Houve uma altura em que tive vontade de participar no Chuva de Estrelas, mas era uma adolescente gordinha e acabei por não me aventurar. Entretanto, aos 16 anos, apaixonei-me por um rapaz que tocava guitarra e quis aprender a tocar para o impressionar. Os meus pais até me ofereceram uma guitarra no Natal e eu fiquei tão contente! Comecei a ter aulas no Conservatório de Música D. Dinis e pensava que ia aprender a tocar músicas como Dunas, dos GNR, mas aquilo era mesmo aprender música a sério.
JP: Foi a sua porta de entrada para o canto?
Cátia Moreso: Sim, mas mais tarde. Só comecei a ter aulas de técnica vocal com 19 anos e com o objetivo de participar no Chuva de Estrelas. No entanto, disseram-me: «Não vais cantar nada disso. Estás aqui para aprender canto lírico.» E, assim, comecei a ter aulas de canto. Nunca tinha tido uma experiência assim e, de repente, fiquei imersa num universo totalmente novo, de melodias e harmonias, e só pensava «Uau, as vozes conseguem criar esta magia? Eu quero fazer parte disso!» Nas aulas de canto, comecei, então, a fazer exercícios de respiração e vocalizos com a professora Margarida Marecos, que me deu todas as bases de que precisava. Nove meses depois, recebi a minha primeira ária para cantar e o sentimento foi indescritível. Ainda hoje sinto a excitação desse momento. Descobri um mundo mágico, como se me tivessem aberto a porta do país das maravilhas, e foi nesse momento que eu soube que era aquilo que eu queria fazer para o resto da minha vida.
JP: E seguiu logo esse sonho?
Cátia Moreso: Não de imediato. Primeiro estive no curso de engenharia biotecnológica, mas não me imaginava enfiada num laboratório. Nessa altura, disse à minha mãe que queria seguir canto, mas ela insistiu na importância de eu ter um curso superior e, por isso, entrei em Design de Interiores. Sempre desenhei muito bem e fazia sentido. Pelo menos era uma área de que gostava. Mas dois anos depois já estava a fazer provas para o Conservatório Nacional. Fui admitida na turma da professora Larissa Shevshenko, e, mais tarde, um ano antes de ir para Londres, fui aluna da professora Filomena Amaro. Foi uma época complicada, porque estava a fazer várias coisas ao mesmo tempo. Trabalhava no São Carlos; quando podia, ia às aulas do curso de Design na faculdade; estudava canto no Conservatório, e à noite fazia récitas no São Carlos. Foi um período muito intenso, mas compensou. Em dezembro de 2003 fiz audição para reforço do coro, e a minha primeira ópera foi Turandot, de Giacomo Puccini. O maestro na altura era o João Paulo Santos. Para mim foi um verdadeiro acontecimento.
JP: Sentiu que finalmente estava no caminho certo?
Cátia Moreso: Sim, foi a primeira vez que senti que tinha conquistado alguma coisa nesta área a nível profissional desde que comecei este percurso. Sempre recebi comentários muito positivos, mas era a primeira vez que estava debaixo dos holofotes, e isso deu-me muita força para continuar. No palco sentia-me alguém e isso foi muito importante para reforçar a minha autoestima. Também venci alguns prémios, entre os quais o 2º Concurso de Canto da Fundação Rotária Portuguesa, o Prémio Bocage no Concurso Luísa Todi e o 1º Prémio no Concurso de Canto José Augusto Alegria.
JP: Como é que se dá a sua decisão de ir estudar para a Guildhall, em Londres?
Cátia Moreso: Adorava estar no coro do São Carlos, mas queria mais do que fazer parte de um grupo coral. Foi uma boa escola a nível de representação e movimentação em palco e deu-me muita confiança, mas quando estamos num coro fazemos parte de uma massa, e eu queria muito ser solista. Então fiz provas para a Guildhall. Aconselharam-me a ir para Itália, mas a Bárbara Barradas e a Susana Gaspar, duas cantoras líricas minhas amigas, estavam em Londres e a adorar a experiência, por isso fiz provas. O meu nível de canto dava-me acesso imediato à pós-graduação, mas eu queria ter a licenciatura, por isso entrei diretamente para o 3º ano. Quando acabei a licenciatura em canto, entrei para o curso de ópera na Guildhall. Mais tarde, fiz provas e entrei no National Opera Studio. Pensei que me ia abrir muitas portas em Londres, mas isso nunca aconteceu.
JP: Como é que lidou com esse desafio?
Cátia Moreso: Fez-me perceber que há uma grande diferença entre ter uma carreira em Portugal e uma carreira internacional. Em Portugal destacava-me, mas ali era só mais uma entre muitas cantoras – apesar de eu ter consciência do meu valor. A meu ver, no Reino Unido, ou noutros países como Itália ou Espanha, dão valor e oportunidades aos cantores nacionais. Curioso, porque em Portugal funciona ao contrário: o que vem de fora é que é bom. Esta é uma indústria difícil. Temos que lidar com frustrações e situações que consideramos injustas, pelo que o segredo para seguir em frente é agarrarmo-nos ao que nos move, ao que gostamos e ao que queremos fazer.
JP: É preciso ter muita resiliência.
Cátia Moreso: Sim. É difícil singrar neste meio, especialmente quando não tens alguém que acredita mesmo em ti e te impulsiona. As experiências em Londres, especialmente no National Opera Studio, tinham já uma vertente mais profissional. Muitos agentes, casas de ópera e diretores de casting iam ver-nos atuar, mas eu nunca tive a oportunidade de me destacar. Sei que era uma jovem promessa, mas eles preferiam apostar em quem era de lá ou em quem já tinha uma boa representação – um agente ou uma agência de peso. Sempre tive trabalho lá fora, mas não eram oportunidades com substância ou com projeção suficiente que depois me dessem a possibilidade de escolher aquilo que eu queria realmente fazer.
JP: E planeava fazer a sua carreira em Londres?
Cátia Moreso: Não, pois não compensava para a carreira de solista que eu ambicionava. Fiquei em Londres até 2012, mas depois voltei para Portugal. Até aí fiz o que era esperado de quem está a construir uma carreira no canto. Tinha trabalhos pagos como cantora de coros, em Glyndebourne, Holland Park e Wexford. Também trabalhei no restaurante Bel Canto para pagar as contas. Foi uma excelente escola. Obrigava-nos a atuar em público, independente das circunstâncias, e deu-me a conhecer outras realidades.
JP: Como é que essas experiências a ajudaram a ser melhor cantora?
Cátia Moreso: Foram muito enriquecedoras. Acredito que a essência de um artista é a forma como observa os outros e a si próprio. Cantar sozinho, seja no duche ou confinado a quatro paredes… que tipo de vivência é essa? Se eu estiver a interpretar uma personagem que passou por dificuldades, como posso representá-la fielmente sem ter uma perceção real dessas circunstâncias? Posso não as ter vivido, mas tenho a capacidade de observar o impacto que as adversidades têm nos outros e ter empatia para com eles. Por exemplo, apenas pelos gestos de alguém, pelo modo como segura um cigarro ou se move, capto uma infinidade de detalhes que são preciosos para um artista. Não me arrependo de nada que vivi lá fora, nem dos desafios que enfrentei, mas sempre quis regressar.
JP: E o regresso a Portugal foi uma decisão difícil?
Cátia Moreso: Foi uma decisão natural. Depois de acabar o National Opera Studio, estive durante alguns anos a fazer coros, até que me apercebi de que estava no mesmo sítio onde tinha começado em Portugal, a cantar em coros. Cá já ia fazendo alguns trabalhos como solista e decidi voltar para casa. Nunca fui para Londres com o objetivo de lá ficar. Sempre quis regressar. Entretanto, engravidei do meu filho mais velho e tudo se conjugou. O nosso país tem muitas vantagens para quem quer que as crianças cresçam com segurança e tranquilidade, e era aqui que eu tinha a minha rede familiar de suporte.
JP: Ainda ambiciona ter uma carreira internacional?
Cátia Moreso: É algo que eu ambiciono e quero muito. Mas a vida proporcionou-me mais oportunidades em Portugal. Considero-me afortunada, até porque consigo sustentar-me exclusivamente com a música. Nunca precisei de dar aulas ou ter outra profissão. Vivo do meu canto. É uma bênção. Não há muitos colegas cá em Portugal que tenham esta mesma sorte, pelo menos aqueles que vivem e trabalham cá. Claro que há grandes nomes que fazem carreira lá fora, e sei que também vou lá chegar. Eu sou muito flexível a nível vocal. Considero-me uma mezzo-soprano dramática, com uma voz mais adequada a um reportório verista do período romântico. Aqui não há muito acesso a estes papéis, por isso adapto-me, tiro vantagem da minha técnica e tessitura vocal, e posso fazer outro tipo de reportório. Embora, consiga cantar tudo o que me propuser a cantar, quero explorar reportório mais adequado à minha voz.
JP: Existe uma atuação ou personagem que tenha sido especialmente significativa para si?
Cátia Moreso: Sim, o papel de Azucena, que fiz no ano passado na ópera Il Trovatore, de Verdi. Foi uma espécie de declaração minha ao mundo.
JP: Como é que se preparou?
Cátia Moreso: É um grande papel, com uma grande carga dramática. Fui muito bem orientada e dirigida pelo maestro João Paulo Santos. Curiosamente, era um papel que já me perseguia há mais de 20 anos. Quando fui para o Conservatório Nacional, a primeira ária que me deram foi a Stride la Vampa, da Azucena, e desde essa altura que soube que a minha voz encaixava perfeitamente nesse papel. A oportunidade surgiu no ano passado, e permitiu-me finalmente revelar a minha verdadeira essência em palco. Recebi muitos elogios, até dos críticos mais exigentes, que só quando eu interpretei a Azucena é que se aperceberam do poder da minha voz. Quando mostrei aquilo que nasci para fazer, desabrochei em palco.
JP: Foi um momento de consagração.
Cátia Moreso: Mesmo! Estava em forma a nível técnico, e a personagem foi interpretada no momento certo da minha vida, porque já tinha sido mãe. Ter de construir uma personagem que acaba por matar o próprio filho na fogueira… Há certas idades para fazer determinados papéis e este não podia ser interpretado por uma menina de 20 anos, que ainda não tem a densidade dramática que se vai adquirindo ao longo da vida. A vida é um drama. Tem coisas muito boas, mas também temos que lidar com muitas dificuldades, e este papel exige muita experiência de vida.
JP: Como é a Cátia Moreso em palco?
Cátia Moreso: Quando estou em palco, estou apenas focada nisso, e só quero estar ali, a viver o momento. Depois, quando saio do palco, acabou. Muitas pessoas perguntam-me como é que me consigo desligar depois. Simplesmente, desligo. Em palco estou por inteiro. Não sou a Cátia. Mas quando a atuação termina e o pano cai, volto a ser eu própria.
JP: E quem é essa Cátia? O que é que ela gosta de fazer, além de cantar?
Cátia Moreso: A Cátia é mãe, é mulher e é filha. Gosto de escrever, de desenhar e dedicar-me à minha nova paixão: tatuar. Estou a aprender sozinha, mas tem sido espetacular! Também gosto muito de trabalhos manuais e de trabalhar com materiais, como papel de jornal. Faço candeeiros, por exemplo; criatividade não me falta! E adoro estar com os meus filhos e acompanhá-los em tudo.
JP: Tem planos de internacionalizar a sua carreira no futuro?
Cátia Moreso: Só preciso de uma oportunidade de me mostrar lá fora. Em Portugal já não preciso de provar nada a ninguém. Já cantei em todas as melhores casas do país e com grandes maestros. Tenho-me estado a preparar para isso todos estes anos. Recebi muito boas críticas internacionais pelo papel de Azucena. Até me compararam às melhores cantoras da Met Opera, por isso eu sei que tenho o que é preciso para construir uma carreira internacional como solista. Só preciso de ir à audição certa, porque o resto é comigo e com a minha voz. Sei que vai acontecer, mais cedo ou mais tarde.
JP: Quais são os seus conselhos para a futura geração de cantores?
Cátia Moreso: Quem quer ter uma carreira na música deve arriscar e mostrar-se ao mundo. Não percam tempo! Em Portugal há trabalho para todos, mas não são suficientes para consolidar uma carreira. Só temos uma grande casa de ópera, e não existem muitos sítios onde os cantores se possam mostrar. Aos jovens, diria para não desistirem. Vai sempre haver quem diga que devem ir com calma, mas nós sabemos o que é melhor para nós próprios, por isso se sentirem que têm de voar é exatamente isso que devem fazer, e procurar sempre o melhor para si. Estão a ter uma aula de canto e sentem que o método não se adequa à vossa voz e objetivos? Procurem outro professor, alguém em quem confiem e que vos ajude a traçar um plano para o futuro. E devem cantar porque se sentem bem a fazê-lo e porque é o que querem fazer da vida. Não cantem porque é «fixe» ou porque querem ser famosos. Isso é uma ilusão, porque nesta área a fama conquista-se com muito trabalho e perseverança. Encontrem o vosso lugar. Eu sou cantora de palco e é assim que me realizo e identifico. Descubram o que é que vos realiza e sigam esse caminho.
Fotografia de perfil de Cátia Moreso por Antonio Ignês
*Entrevista à mezzo-soprano Cátia Moreso publicada originalmente em www.proart.art
Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
Quer saber mais? Veja e ouça abaixo uma das suas belas atuações:
Próximas atuações:
Falstaff de Giuseppe Verdi
Teatro Nacional de São Carlos 11, 13, 15 e 17 de maio de 2024, 20h
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