Por Joana Patacas, em 21 de junho de 2024
Para Débora Halász, a música é muito mais do que uma série de notas executadas com precisão. É uma linguagem universal que lhe permite comunicar as emoções humanas mais profundas, e ela fá-lo com uma técnica tão apurada que parece ser uma extensão natural do seu próprio ser.
"A jovem pianista Débora Halász, filha de imigrantes húngaros nascida em São Paulo, parece ser do mesmo calibre que os Ranki e Kocsis. Ao ouvir este primeiro volume de Villa-Lobos, é certo que o talento e a maturidade estão completos.” - Repertoire (França)
Esta talentosa pianista, que também é compositora e arranjadora, tem-se vindo a destacar no cenário internacional, conquistando elogios da crítica pela sua técnica prodigiosa e virtuosismo soberbo. Ao longo da sua carreira, tem-se dedicado à divulgação de compositores como Villa-Lobos e Carlos Seixas, bem como à valorização da música clássica brasileira. A sua extensa discografia inclui também obras de compositores como Alberto Ginastera, Dimitri Schostakowich, Sofia Gubaidulina, Hans Werner Henze, Claude Debussy, J. S. Bach, Mario Castelnuovo-Tedesco e Radamaés Gnattali.
"Há escrita tecnicamente exigente aqui – mas Seixas era aparentemente um virtuoso considerável... Débora Halász parece largamente imperturbável por estas dificuldades e destemida ao impor-se tempos muito rápidos (…). Este é um começo promissor para um projeto muito valioso, e aguardo com expectativa os próximos volumes." - Musicweb International
Desde o início da sua jornada musical, marcada pela estreia aos 15 anos com a Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo e a aclamada interpretação do 3º Concerto para Piano de Rachmaninoff com apenas 19 anos, que lhe valeu o Prémio da Crítica (APCA), Halász tem continuado a acumular reconhecimentos significativos, incluindo o prestigiante Grammy Latino que lhe foi atribuído em 2015.
"Débora Halász revela-se notável pela facilidade e musicalidade, compreendendo maravilhosamente esta música ora refinada, lírica, sensual, ora telúrica, arrebatadora." -Diapason (França)
Ao longo da sua formação musical, Débora teve a oportunidade de estudar com renomados professores, como Magdalena Tagliaferro, Beatriz Balzi e Myrian Dauelsberg no Brasil, e com Pavel Gililov na prestigiada Musikhochschule de Colônia, na Alemanha. Foi essa sólida base musical que lhe permitiu desenvolver uma técnica impecável e um entendimento profundo dos diversos estilos e períodos da música clássica.
"O que mais gosto na maneira de tocar da Débora Halász é a sua sensibilidade. Um estilo que se pode comparar ao de András Schiff, muito inteligente e sensível, mas ainda assim tecnicamente superior." - EGT (Suíça)
Além da sua carreira solo, Débora também se destaca na parceria musical com seu marido, o guitarrista Franz Halász, formando o aclamado "Duo Halász". Juntos, exploram as possibilidades de diálogo entre o piano e a guitarra, criando arranjos originais e interpretações únicas. O seu mais recente projeto é é o quinteto ESCUALO5, oferece uma experiência autêntica e original da música de Astor Piazzolla, combinando virtuosismo, improvisação e precisão rítmica.
Nesta entrevista à ProART, conduzida por Joana Patacas (JP), teremos a oportunidade de conhecer mais sobre a trajetória artística de Débora Halász numa conversa inspiradora com uma das pianistas mais talentosas e versáteis da sua geração.
Como e com que idade descobriu a sua paixão pela arte?
Débora: Já em criança, quanto tinha três, quatro anos, adorava escutar as aulas de piano da minha irmã mais velha. Aos seis anos, comecei a ter aulas de instrumento.
Quais foram as suas principais referências familiares ou ídolos que a inspiraram?
Débora: A minha avó, que era húngara, tocava muito bem piano e ensinou-me várias obras quando eu era criança. E os meus pais tinham muitos discos antigos de grandes pianistas e violinistas que eu ouvia de pequena. Brailowsky era um dos quais me lembro ainda. Depois creio que o mais me inspirou foi Vladimir Horowitz que eu adorava, também admirava Vladimir Ashkenazy, Martha Argerich e Maurizio Pollini.
Começou a sua formação musical muito cedo. Conte-nos como foi esse percurso.
Débora: Fui aluna da escola de Magdalena Tagliaferro, no Brasil. Aos 15 anos, ela queria que eu fosse estudar com ela em Paris, mas meus pais não permitiram. A escola foi excelente em todos os sentidos, com um grande foco no desenvolvimento técnico e na flexibilidade dos movimentos, bem como no controlo sonoro e compreensão estilística. Depois, fui aluna de Beatriz Balzi, uma pianista argentina que estudou com Vincenzo Scaramuzza, professor de Martha Argerich. Com ela, explorei uma maior diversidade nos ataques e na precisão dos movimentos, e tive um contacto muito mais profundo com as correntes da música contemporânea do final do século XX. A minha última professora no Brasil foi Myrian Dauelsberg, que me proporcionou uma formação que transcendeu a música. Foram tempos muito intensos e que me permitiram expandir completamente os meus horizontes.
Fez também parte da sua formação na Musikhochschule de Colónia. Ficar a viver na Alemanha foi uma decisão natural?
Débora: De certa forma, sim. Após um ano na faculdade, eu já estava a lecionar e sentia-me bastante integrada. Dois anos depois, conheci o meu atual marido, o que tornou a decisão de permanecer muito mais fácil.
Quais foram os maiores desafios com que se deparou?
Débora: Tocar o 3.º Concerto de Sergei Rachmaninoff aos 19 anos foi um grande desafio e exigiu muito trabalho. Outro momento desafiador foi quando decidi participar no Concurso Internacional Franz Liszt, na Holanda, e aprendi todo o repertório em apenas três meses. Eram quatro horas de programa, inteiramente dedicadas a Liszt, incluindo a Sonata, a Fantasia sobre tema do Don Giovanni e o 1.º Concerto.
Qual foi a sua primeira grande conquista ou reconhecimento no mundo artístico?
Débora: O meu primeiro grande prémio surgiu aos 15 anos, quando venci um concurso para tocar com a Orquestra Sinfônica de São Paulo. Essa foi a minha estreia com orquestra. Depois, mais tarde, quando recebi o prémio da crítica como melhor intérprete do ano, em reconhecimento pela minha atuação.
Ganhou o Grammy Latino em 2015. Que impacto teve este prémio na sua carreira?
Débora: Foi uma grande alegria para mim, e ainda é. Antes de mim, somente Nelson Freire havia recebido este prémio entre os grandes pianistas brasileiros. Dividir esta honra com ele foi, sem dúvida, um reconhecimento significativo na minha carreira.
Há alguma performance, obra ou projeto do qual se sinta particularmente orgulhosa?
Débora: Sinto-me orgulhosa de todas as minhas gravações, especialmente das obras de Heitor Villa-Lobos. Acredito que consegui deixar uma referência importante sobre a genialidade deste compositor. Também tenho um carinho especial pelo álbum "Alma Brasileira", com obras de Radamés Gnattali, que foi nomeado para o Grammy Latino como melhor álbum de música clássica. Além disso, a gravação e a performance da Sonata de Sofia Gubaidulina, que toquei ao vivo na presença da compositora em Munique, foi um projeto muito envolvente e gratificante.
A série de discos dedicada a Villa-Lobos foi uma forma de se manter ligada à cultura brasileira?
Débora: Estarei sempre ligada à cultura brasileira. Essa é uma influência que nunca se descarta. A minha motivação para dedicar uma série de discos a Villa-Lobos foi criar um registo fonográfico que fizesse jus à qualidade das suas obras pianísticas. Infelizmente, ele ainda é bastante negligenciado no mundo pianístico. Villa-Lobos compôs muitas obras que fascinam o público e oferecem ao intérprete inúmeras possibilidades para explorar sua fantasia e virtuosidade.
Também «resgatou» a obra de Carlos Seixas, um compositor português do século 18. O que a motivou? A descoberta do cravo?
Débora: Esse trabalho surgiu numa época em que me quis aprofundar no repertório barroco e acabei por me apaixonar pelo som dos cravos históricos. Os cravos são instrumentos extremamente desenvolvidos e tocar o repertório barroco nesses instrumentos originais revelou-me quão flexível e dinâmica essa música pode ser, muito ao contrário da perspetiva monótona e quase robótica de muitos pianistas. Além disso, interessa-me descobrir e apresentar obras e compositores que não sejam tão explorados. As sonatas de Carlos Seixas são maravilhosas e equiparáveis às de Domenico Scarlatti, embora as deste último já tenham sido gravadas centenas de vezes. Não me atrai a ideia de repetir o que já foi feito inúmeras vezes. Não compreendo muito bem o que motiva um artista a tocar sempre o mesmo repertório.
Em 1993, formou com o seu marido Franz Halász “Duo Halász”. Como tem sido essa experiência?
Débora: Diria que por vezes é maravilhosa e outras vezes bastante desafiadora. O piano e a guitarra são dois instrumentos com grande potencial harmónico e melódico, capazes de se complementarem de forma surpreendente. No entanto, há uma clara desigualdade na potência de ambos, o que exige um extremo controlo e contenção do volume pianístico para alcançar o equilíbrio desejado. Naturalmente, isso não é o que um pianista mais aprecia fazer – conter-se! Felizmente, Franz é um guitarrista que possui um volume considerável e sempre conseguimos encontrar o equilíbrio certo. A escassez de repertório para essa combinação também impulsionou a minha criatividade como arranjadora e, posteriormente, como compositora, o que considero um aspeto crucial para mim. Além de tudo, há o prazer de compartilhar o palco com alguém amamos.
Foi professora na Musikhochschule Nürnberg e atualmente dá aulas na Hochschule für Musik und Theater em Munique. Qual é a sua visão do ensino da música?
Débora: Entendo que todos conhecimentos musicais, como a compreensão dos diversos estilos, o frasear, a construção dos rubatos, a preparação das dinâmicas, o uso de acentos e diferentes ataques, entre muitos outros detalhes que compõem uma interpretação madura, são transmitidos pela tradição. Claro, aprende-se muito ouvindo outros grandes intérpretes, óperas, orquestras e explorando outras correntes musicais e artes. No entanto, não acredito que um músico possa evoluir sem um mentor. A música não é uma arte para autodidatas, pois é essencial aprender a ouvir. Trabalho com meus alunos para que eduquem a sua audição, aprendam a se ouvir de forma crítica e desenvolvam a sua própria personalidade criativa. Há uma grande distância entre saber ler uma partitura e criar uma interpretação séria e interessante. O meu papel é guiá-los nesse caminho, ajudando-os a compreender e a transformar a linguagem musical numa voz própria que expresse as suas histórias, emoções e pensamentos.
Como define a música?
Débora: A música consiste em intervalos de sons organizados que, através dessa organização, se transformam numa linguagem. E, como toda linguagem, possui poder. Imagino que a música, assim como as outras artes expressivas, seja a linguagem do nosso eu interior. Nem tudo que somos é passível de ser expressado e comunicado através da linguagem verbal. Mas, sem dúvida, a voz humana é o ponto de partida da expressão musical, tornando a música uma arte muito mais acessível e próxima de todos os seres humanos do que outras manifestações artísticas. Para mim, interpretar ou criar uma obra musical é como contar uma história que pode emocionar, fazer o coração sorrir ou chorar, sofrer ou se desconectar. Através da música, é possível penetrar e conhecer uma outra realidade da existência, como se fosse um universo paralelo dos nossos sentidos. Existem células e neurónios no nosso corpo que vibram com outra intensidade durante um intercâmbio sonoro. A pessoa que experimenta essa imersão profunda no universo musical dificilmente consegue se libertar da magia que a música exerce. Por isso, para muitos músicos, a música não é apenas uma profissão, mas uma paixão, algo capaz de justificar a existência.
Quais seus passatempos ou atividades de lazer?
Débora: O meu dia começa sempre com um passeio com o meu cão. Por sorte, vivemos num lugar com muita natureza e, em todas as épocas do ano, podemos desfrutar de paisagens maravilhosas. Isso faz-me muito bem e traz-me inspiração e energia. Eu e o meu marido temos também um veleiro e velejamos sempre várias semanas no verão. É uma paixão e, como fazemos de forma intensa, é como se compensasse os outros meses apenas de trabalho. Também gosto muito de pintar e sou aficionada por cinema.
O que espera alcançar nos próximos anos?
Débora: Nos últimos anos, comecei a compor e desejo intensificar essa nova atividade. Em 2023, gravei o meu primeiro álbum solo com obras apenas minhas, o que me enche de orgulho. Este trabalho será publicado durante este ano. Além disso, estou dedicada a compor mais obras de música de câmara para diferentes formações e tenho como meta aprofundar o meu conhecimento de outros instrumentos e estudar orquestração de forma mais séria. Como pianista, estamos constantemente envolvidos com compositores absolutamente geniais, o que é maravilhoso, mas ao mesmo tempo pode ser intimidante para o nosso próprio impulso criativo. Libertar-me dessa autocensura é um processo contínuo, mas moroso.
O que gostaria de partilhar com o seu público?
Débora: Gostaria que ouvissem as minhas gravações porque gravo com paixão, como se estivesse a tocar para um grande público, com muita entrega, pensando em todas as pessoas que nunca vou conhecer pessoalmente, mas que irão interagir comigo através desta experiência única e maravilhosa que é a música.
Tem um conselho para os jovens músicos que estão agora a começar as suas carreiras?
Débora: Nunca deixem de sonhar, mas também nunca deixem de aspirar ao crescimento das vossas habilidades e compreensão artística. Não se contentem com pouco. Quem pensa que o que está a tocar já está suficientemente bom, ainda tem muito que trabalhar.
* Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos
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