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Carlos Guilherme: uma vida dedicada à música



Carlos Guilherme

Por Joana Patacas*, em 30 de agosto de 2024


Reverenciado como o mais famoso tenor português da atualidade, o nome Carlos Guilherme é sinónimo de excelência na música lírica. Figura de referência no canto lírico, tem conquistado plateias em todo o mundo com a sua voz insuperável e interpretações cativantes. Após uma longa e consistente carreira, continua a cativar o público, que o acolhe com entusiasmo fervoroso a cada apresentação.

 

Carlos Guilherme é um nome incontornável no panorama da música clássica e do canto lírico em Portugal. Com mais de 40 anos de carreira e um somatório de 91 óperas, é o mais estimado cantor lírico português e com a mais longa carreira ainda no ativo.

 

Aos 79 anos, o tenor Carlos Guilherme continua a deslumbrar com a sua voz poderosa e técnica impecável. Um verdadeiro feito para alguém que em 2024 estreou a sua nonagésima primeira ópera - "Felizmente Há Luar!", com música e libreto de Alexandre Delgado, a partir da peça homónima de Luis Sttau Monteiro

 

"Nesta fase da minha carreira, é encantador partilhar o palco com cantores que têm quase meio século a menos do que eu. Sinto-me rejuvenescido. Enquanto tiver garganta para cantar, vou continuar a subir ao palco." – Carlos Guilherme

 

Nascido em 1945 na cidade de Lourenço Marques, atual Maputo, em Moçambique, cresceu imerso na rica cultura musical da então colónia portuguesa. A sua paixão pelo canto despertou cedo, aos sete anos, quando interpretou um fado de Coimbra na sua terra natal. Embora tenha tido aulas de canto na antiga Rodésia, hoje Zimbabué, com Greta Muir, foi com os ensinamentos de John Labarge, já no Conservatório Regional do Algarve, que a sua voz e a sua carreira começaram a desabrochar. Posteriormente, melhorou a sua técnica vocal com Marimi del Pozo, Gino Becchi, Campogalliano, Claude Thiolass e Regina Resnik. Entre outros projetos, foi cantor residente do Teatro Nacional de São Carlos de 1980 a 1992

 

Em 1980, deu o grande passo rumo à consagração, tornando-se artista residente do Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, até 1992. Estreou-se com a ópera "Macbeth", abrindo caminho para dezenas de papéis principais em óperas como "A Flauta Mágica", "Don Giovanni" e "O Rapto do Serralho".

 

Desde então, Carlos Guilherme tem repartido o seu talento entre a música clássica e a música ligeira. O seu vasto repertório inclui mais de 40 papéis principais em cerca de 90 óperas, além de inúmeros recitais e concertos. Ao longo da sua carreira, tem colaborado com as principais orquestras portuguesas, bem como com prestigiadas orquestras internacionais, como a Orquestra de Câmara de Pádua, a do Comunal de Bolonha, a Filarmónica de Moscovo, e as Sinfónicas de Budapeste, São Francisco, Israel, Pequim e Xangai.

 

A música é uma vivência e uma maneira de estar na vida. Vivo a música e com a música.” – Carlos Guilherme

 

Ao longo desta entrevista exclusiva à SMARTx, Carlos Guilherme partilha a sua extraordinária jornada, desde os primeiros passos no mundo da música em Moçambique até se tornar um dos artistas mais celebrados da atualidade, que, através da sua voz e do seu exemplo, continua a elevar a arte do canto lírico em Portugal e além-fronteiras. Com uma honestidade e humildade que lhe são características, o tenor reflete sobre os momentos altos e baixos da sua carreira, os desafios que enfrentou e as lições que aprendeu ao longo do caminho.

 

 

Cresceu em Lourenço Marques. Quando e que a música entrou na sua vida?

 

Desde que me lembro. A primeira vez que cantei em público devia ter cerca de sete, oito anos – cantei um Fado de Coimbra. Depois comecei a cantar num clube local. Também participava em programas de imitações na radio. Tocava harmónica de boca e imitava o João Maria Tudela. Era muito bom nisso. Participei em vários concursos organizados pelo Rádio Clube de Moçambique, que era muito ativo. Tinha edifício próprio, orquestra fixa, fundada pelo maestro Belo Marques e que também foi dirigida pelo maestro e compositor Artur Fonseca, e programas semanais de variedades com público. Comecei por ir assistir, mas depois comecei a trabalhar com eles. Uma vez imitei o tenor Alberto Ribeiro, mas ainda era muito miúdo. Tiveram que me por em cima de uma cadeira para conseguir chegar ao microfone. Mesmo assim, ganhei um pacote maços de cigarros para o meu pai. Nessa altura, fumar era considerada uma coisa normal e até viril.

 

Disse uma vez que o facto de não ter cantado entre os 12 e os 14 anos lhe salvou a voz. Porquê?

 

Essa altura coincidiu com a minha vinda para Portugal. A minha irmã, que é nove anos mais velha do que eu, tinha vindo para cá estudar e a minha mãe não a queria deixar sozinha, por isso ficámos cá até ela se formar. O meu pai, que era funcionário das finanças, fez uma comissão de serviço no Ministério do Ultramar durante esse período. Vivíamos num apartamento onde o silêncio era quase obrigatório, e eu não cantava. Talvez por isso tenha conseguido preservar o meu registo vocal durante a mudança da voz, mas não sei se foi esse interregno que “salvou” a minha voz”. O que sei é que essa não foi uma época feliz. Senti que viver aqui era como estar numa prisão, especialmente para um rapaz que vinha de Lourenço Marques, onde havia muita liberdade. Lá, a praia estava a apenas dez minutos a pé de casa e fazia-se muito desporto. Aqui, a diversão era limitada. Lembro-me de ir ao Jardim da Estrela jogar caricas, e se a carica caísse no relvado, um guarda já não deixava que a apanhássemos, ou corríamos o risco de ir para uma casa de detenção. Foi uma experiência muito diferente e frustrante. No primeiro ano vivemos em Coimbra. Embora fosse numa zona de campo, não fui completamente feliz. Depois mudámos para Lisboa, para a zona de Campo de Ourique, mas também não me adaptei. Fiz três anos no Liceu Pedro Nunes, onde havia uma presença muito forte da mocidade portuguesa. Lembro-me de que quem acusasse um colega tinha direito a um bilhete para ir ver um jogo de Andebol. Não estava habituado a esta realidade. Em Lourenço Marques só tínhamos a parte positiva da mocidade, como o desporto, particularmente a vela, e as aulas de teatro. A própria PIDE não tinha lá a força que tinha em Portugal continental. Policiavam as fronteiras, mas não tinham tanta ingerência na vida quotidiana das pessoas.

 

Aos 14 anos regressa a Moçambique. Como foram esses anos? A música continuou a fazer parte da sua vida?

 

Sim, mas fui para a cidade da Beira, onde acabei o liceu aos 17 anos. Depois de me formar em Estudos Gerais Universitários de Moçambique, comecei a dar aulas de matemática e ciências e, entretanto, fiz serviço militar. Não sou nada a favor do militarismo, mas éramos obrigados a ir para a tropa. Entrei para a Escola de Aplicação Militar de Moçambique em 1969. Estive dois anos e meio na Zona Operacional e cheguei a capitão graduado. Durante este período, nunca deixei de cantar. Cantava para a malta da tropa. Em 1970 lancei o single “Madrugada” pela editora Delta e fui eleito “Rei da Rádio” de Moçambique. Depois disso ainda gravei mais quatro canções com banda. Terminei o serviço militar em fevereiro de 1973, e regressei, já casado e com dois filhos, à casa onde tinha vivido com os meus pais em Lourenço Marques. Era uma propriedade familiar à qual o meu pai acrescentou dois andares. Eu vivi durante um ano no andar de cima, os meus pais vivam no do meio e a minha irmã no andar de baixo. Regressei ao ensino, mas depois deu-se o 25 de Abril e decidi emigrar para a Rodésia, atual Zimbabué. Acabei o ano letivo e parti em setembro desse ano. Lá, vivi dois anos maravilhosos. Foi onde comecei a cantar repertório mais clássico e tive as minhas primeiras lições de canto. Comecei por trabalhar no Ministério da Saúde e só depois é que consegui uma colocação no ensino, mas o meu ordenado de professor era relativamente baixo, e, por isso, cantava num hotel para ganhar algum dinheiro extra.

 

E começou a ter aulas de canto lírico.

 

Sim. Houve uma ocasião em que cantei no aniversário de um colega do Ministério da Saúde, que dizia que eu tinha voz para ser cantor de ópera. Foi ele que me pôs em contacto com a Greta Muir, que dirigia a ópera amadora de Salisbury (atual Harare). Naquela altura só se faziam produções uma vez por ano, com encenadores que vinham de propósito de Inglaterra. A primeira ópera que fiz foi “Um Baile de Máscaras” de Giuseppe Verdi, precisamente em inglês! Também cantava no hotel às quartas-feiras com um conjunto português que lá atuava (um pianista e um baterista) e comecei a ser reconhecido por isso. Como não conseguiam pronunciar o meu nome, apresentava-me como Charles William.

 

Qual foi o momento mais desafiante da sua carreira?

 

Da carreira, não sei. O maior desafio da minha vida foi o tempo que passei a fazer serviço militar, sem dúvida. Tudo o resto, como as dificuldades pessoais e profissionais, faz parte da experiência normal de ser humano. Se não fosse cantor, teria sido professor. Gostava muito de ensinar.

 

Ganhou vários prémios ao longo da sua carreira. Há algum que tenha sido mais significativo?

 

Os prémios que ganhei na rádio foram muito especiais porque eram por votação popular. Lembro-me de que em 1969, no ano anterior a ter sido eleito o “Rei da Rádio”, estive em primeiro lugar até à última semana. No entanto, houve outro cantor que comprou votos e fui ultrapassado. A imprensa acabou por me atribuir um prémio de honestidade. No ano seguinte, ficou ele em segundo lugar. Aliás, tive quatro prémios da imprensa como melhor cantor do ano. As minhas gravações passam muito na rádio, mas tornei-me mais conhecido nos espetáculos ao vivo. Também recordo o prémio que venci no Concurso Internacional de Eisteddfod, em 1975, quando ainda vivia na Rodésia. Foi o primeiro prémio que ganhei no âmbito do canto lírico. Mais tarde, em 1982, já em Portugal, foi-me atribuído o Prémio Tomás Alcaide.

 

Nessa altura já considerava que o seu futuro profissional passava pelo canto lírico?

 

Não, pelo contrário. Nessa altura pensava que a minha carreira na ópera ia acabar quando viesse viver para Portugal. Nessa altura, o país ainda estava em plena fase revolucionária, pelo que ainda pensei em adiar essa decisão, mas sabia que ficar em África seria adiar um problema, pelo que voltei para Portugal em 1976. Instalei-me com a minha mulher e os meus filhos em Alcantarilha, no Algarve, mas fiquei colocado numa escola em Estremoz. Foi o pior ano da minha vida. Dava aulas durante a semana e ia para o Algarve aos fins de semana. Metia-me no comboio ao final do dia rumo a Alcantarilha Gare e ainda tinha de fazer mais seis quilómetros a pé. Chegava a casa já de madrugada, por volta das quatro da manhã. Hoje em dia isto seria impensável. Estava com os miúdos no sábado e domingo à tarde tinha que refazer o caminho de volta. Quando chegava a Évora já não havia ligação para Estremoz, pelo que cheguei a dormir na estação de comboios e quando chegava de manhã ia direto para a escola. As coisas melhoraram quando um tio da minha esposa que morava em Évora passou a levar-me de carro até Estremoz, mas foi um ano horrível… tanto mais que o meu pai estava com cancro já em fase terminal em Lisboa…

 

Mas entretanto começou a estudar canto no Conservatório Regional do Algarve.

 

Sim, nessa altura já tinha conseguido colocação em Lagoa, no Algarve. Costumava cantar em casa e toda a gente sabia que eu cantava. Já não faço isso, perdi esse hábito. Agora só canto em casa se me estiver a preparar para um concerto. Numa ocasião, o coro do Conservatório foi tocar à igreja. Alguém mencionou que eu cantava e já se sabe, uma coisa leva à outra… e a Maria Campina, grande pianista e fundadora do Conservatório em 1973, sugeriu que eu cantasse uma “Ave Maria”. Foi assim que comecei a colaborar com o Conservatório. Com o pianista João de Almeida, discípulo da Maria Campina, fazia espetáculos em hotéis a troco do jantar. Eu acompanhava-o cantando algumas árias, mas nada muito transcendente, porque não tinha evoluído tanto como podia nas aulas que tinha tido na Rodésia. Recomecei a estudar canto com o John Labarge, quando ele foi para o Conservatório do Algarve. Foi com quem mais aprendi e ele acabou por mudar a minha vida por completo.

 

Como é que foi trabalhar com ele?

 

Um privilégio. O Labarge era um naturista da voz. Durante um mês, não me deixou cantar em plena voz. Em vez disso, incentivou-me a descobrir todas as ressonâncias que temos no rosto e a ouvir outros cantores, inclusive de música ligeira, como Nat King Cole e Frank Sinatra. Ele queria que eu observasse como é que eles posicionavam a voz para cantar a nota seguinte. Ao fim de um mês, começou a fazer escalas comigo. Depois dizia: "Você está a meter a língua no meio. Isso vai obstruir a passagem do som." Ele corrigia tudo, nos mínimos detalhes. O que aprendi com ele deu-me a base para cantar qualquer coisa. Só houve uma coisa que aprendi mais tarde: a cobrir a voz. Os meus agudos eram um pouco abertos, e foi então que aprendi a defender os agudos. É como um pináculo de catedral, mas com uma almofada por baixo, que dá ao público a sensação de que ainda se pode ir mais acima, mas na verdade não pode, nem deve. É um efeito de ilusão.

 

Como é que se tornou cantor residente do Teatro Nacional de São Carlos em 1980?

 

Nesse ano, o São Carlos veio ao Algarve fazer a ópera “Madama Butterfly” e o compositor, musicólogo e crítico de música João Pais, que na altura era o diretor artístico. Disse-me que tinha sido fundada uma companhia portuguesa de ópera e que precisavam de tenores, primeiro para o coro de solistas, de onde iriam ser escolhidos os futuros solistas do São Carlos. Foi uma decisão muito pensada. Na altura, eu era professor efetivo numa escola que ficava a 10 minutos a pé da minha casa e pela primeira vez tinha estabilidade familiar no Algarve. Acabei por ir a Lisboa fazer provas e foi nessa altura que conheci o maestro Armando Vidal, que me acompanhou a vida toda. Lembro-me de que estava com uma grande constipação, mas cantei duas árias, fiz vocalizos para aferirem a extensão da minha voz e no fim disseram que queriam mesmo contratar-me. Propuseram-me ir para Lisboa ainda associado ao Ministério da Educação, o que significava que se eu não me adaptasse podia regressar para o Algarve e continuar a dar aulas. Tive o apoio incondicional da minha mulher.

 

Conte-nos algo que nem todos saibam sobre a sua carreira.

 

Durante 21 anos fui cantor convidado em cruzeiros durante o mês de agosto, uma atividade que não colidia com a época do São Carlos. Fazia um espetáculo de 45 minutos uma vez por semana a cantar música ligeira e aproveitava as férias em família durante o resto da viagem. Não havia cachê, mas a minha voz permitiu-me viajar pelo mundo todo. Fui várias vezes ao Cabo Norte, à Noruega e aos fiordes, mas também às Caraíbas, à Amazónia, Estados Unidos, Emiratos Árabes e vários países no Mediterrâneo. O último cruzeiro que fiz foi de Hong Kong até Marselha, passando pela Malásia, Tailândia, Singapura, Sri Lanka.

 

Embora tenha deixado de ser cantor residente do Teatro Nacional de São Carlos em 1992, continua a fazer ópera?

 

Sim, por convite, mas sou cada vez mais seletivo. Um exemplo é a ópera “Felizmente, Há Luar!”, que estreou em maio deste ano na cidade da Guarda, indo de seguida ao Teatro São Luiz, onde fizemos três récitas, seguindo-se uma digressão por várias cidades até outubro. Tem sido um trabalho extremamente gratificante, não só pela qualidade da música do Alexandre Delgado, mas também pela excelente encenação do Allex Aguilera. Já tinha feito duas obras do Alexandre – “O Doido e a Morte” e “Rei Lear” – e já estou muito familiarizado com o trabalho dele. Gosto muito do que ele escreve.

 

Como foi trabalhar com o encenador Allex Aguilera na ópera “Felizmente, Há Luar!”? Como se preparou?

 

Foi muito enriquecedor, pois ele dá grande valor à criatividade de cada um. Evita impor marcações cénicas rígidas, preferindo que cada cantor / ator encontre a sua própria expressão naturalmente. Esta abordagem estimula uma autenticidade que muitas vezes falta em produções onde existem instruções detalhadas sobre onde e como atuar. O Allex possui um profundo entendimento do espírito humano e uma vasta experiência, o que o torna excecionalmente humano no trato com os atores. Aprecio imenso trabalhar com ele, visto que há um respeito mútuo que se traduz numa colaboração produtiva e respeitosa. Relativamente à preparação para este papel, inicialmente concentrei-me na parte musical e, de forma gradual, a componente cénica foi-se revelando de maneira orgânica. Neste processo, o Allex foi fundamental, proporcionando correções e sugestões valiosas. Alertava-me, por exemplo, contra a declamação que pudesse parecer artificial e buscava sempre um equilíbrio na expressão, de forma a refletir a verdade do personagem. Na minha experiência em encenação, raramente encontrei alguém tão recetivo à expressão individual do ator. Muitos encenadores, inclusive os renomados que passam pelo Teatro São Carlos, frequentemente limitam-se a dirigir as entradas e saídas, ou a fazer encenações que não honram a história e a música. Com o Alex, contudo, o processo é diferente: é um trabalho constante de aperfeiçoamento, onde, através de muitos ensaios, enriquecemos o papel, adicionando e ajustando detalhes para construir o personagem de forma coesa e convincente.

 

E como é que se sentiu ao contracenar com cantores mais novos, que estão no início das suas carreiras?

 

A experiência tem sido extremamente gratificante. Temos um espírito de equipa muito bom. Encanta-me partilhar o palco com cantores que têm quase meio século menos de idade do que eu. Para mim, trata-se de um verdadeiro rejuvenescimento. Esta é a minha nonagésima primeira ópera e, quem sabe, até poderá ser a última. Ainda assim, enquanto tiver voz para cantar e sentir que contribuo efetivamente, sem prejudicar ninguém, e estiver ao nível dos outros artistas, pretendo manter-me ativo o máximo de tempo possível. Mais do que o ambiente, é preciso destacar que há vozes verdadeiramente espetaculares neste grupo, vozes impressionantes.

 

Disse há pouco que nem sempre concordou com a forma como foram encenadas algumas das óperas em que participou. Quer-nos dar um exemplo?

 

Interpretei uma versão bastante invulgar de Herodes na produção de "Salomé". Nesta adaptação, o personagem era simultaneamente um barão da droga e um pedófilo, o que já adiciona uma camada complexa e contemporânea ao papel. A famosa dança dos sete véus foi substituída por uma cena onde eu jogava badminton com Salomé, enquanto a Herodíade [a esposa de Herodes], passava a ferro, inserindo elementos cómicos e surreais que desviavam bastante do original. A determinada altura, a encenadora confrontou-me sobre a minha interpretação, alegando que eu não tinha captado a autoridade de Herodes. Respondi, apontando as contradições na encenação, como colocar-me em cenas pouco convencionais e vestir-me de forma ridícula, argumentando que desta forma não era possível transmitir a autoridade exigida pelo papel. Expliquei que, embora tentasse ancorar a autoridade na música e na entrega vocal, a própria direção cénica parecia contrariar essa intenção. Acabei por fazer o que ela queria, claro, mas o público não foi unânime na apreciação. O público é uma entidade inteligente. Ainda assim, foi um papel muito exigente, mas que me cativou muito a nível vocal.

 

Já se recusou a fazer alguma coisa em palco?

 

Sim, numa das encenações da ópera “Eugene Onegin”, o encenador queria que eu fizesse um gesto obsceno. Recusei-me. Tinha um público fiel há mais de 30 anos e só o faria se existisse uma razão muito forte do ponto de vista cénico. Não havia, por isso não aceitei fazê-lo apenas por ser um gesto disruptivo. Claro que o meu estatuto no São Carlos já me permitia tomar este tipo de decisões.

 

Quais foram as óperas que mais o marcaram?

 

Adorei fazer a ópera “O Elixir do Amor” de Gaetano Donizetti, com a maravilhosa soprano Elvira Ferreira. Na altura, existiam dois elencos, um nacional e um internacional. Os novatos como eu, que estava no início da minha carreira, integravam o elenco nacional, embora o elenco internacional também contasse com cantores portugueses. O nosso elenco foi o mais aplaudido na última récita. Fomos “adotados” pelo público e tivemos as melhores críticas. Também gostei muito de fazer a ópera “Amor das Três Laranjas” de Prokofiev, em 1993. Mais tarde, em 1996, convidaram-me para ir à Nova Ópera de Israel, em Tel Aviv. Foi a ópera mais bem encenada que vi no São Carlos. Lembro-me de que tinha um duplo, um ginasta da minha estatura e vestido exatamente como eu, que entrava em palco e fazia movimentos em flic-flac até sair de cena pelo outro lado. O Correio da Manhã chegou a fazer uma manchete do género “Carlos Guilherme faz malabarismos com três laranjas no São Carlos e ainda canta ópera”, mas acho que o público sabia perfeitamente que não era eu…

 

Tem algum cuidado especial com a voz?

 

Em vésperas de representar papéis exigentes, sim, tenho alguns cuidados especiais. Não bebo coisas geladas e descanso o máximo que posso. Falo o mínimo possível. Tem que haver poupança de voz, especialmente antes das grandes atuações. Os ensaios de cena no palco são fundamentais para medir o esforço necessário. Muitas vezes, ensaiamos numa sala pequena, mas no palco não podemos fazer a mesma coisa. A projeção vocal precisa de ser adequada para o espaço, e isso exige poupança de voz em certos momentos. É algo bastante orgânico, uma sensação interna que se desenvolve com a experiência.

 

Atualmente, em que projetos está envolvido?

 

Ainda estou envolvido numa diversidade de espetáculos, todos coordenados pela Filipa Lopes, que faz parte do Coro do Teatro Nacional de São Carlos, e organiza eventos de forma independente. Um dos destaques é o "Dois Fados em Concerto" com Teresa Tapadas, onde ela canta o Fado de Lisboa e eu canto o Fado de Coimbra num ambiente acústico, acompanhado apenas por guitarra e viola. Outro projeto é a "Serenata — Fado de Coimbra e Canções Napolitanas", também acompanhado por guitarra e viola. Além disso, realizo recitais com piano, e colaboro com bandas filarmónicas. Durante a época de Natal, tenho um Duo Lírico com a Teresa Tapadas, em que interpretamos peças sacras e tradicionais ao piano. Por último, desenvolvi um formato de espetáculo no qual conto a história dos meus mais de 40 anos de carreira, acompanhado por projeções de fotografias. Este espetáculo, que estreou na Igreja do Carvoeiro e foi repetido na Quinta da Regaleira, teve muito boa receção. Além disso, realizo espetáculos com playbacks orquestrais, o que permite uma produção pouco onerosa e fácil de montar em qualquer lugar, pois é apenas necessário um sistema de som e um técnico para o operar. Ao longo da carreira gravei 13 discos, pelo que disponho de um vasto repertório.

 

O que para si a música?

 

É uma vivência. Vivo a música e com a música. Por exemplo, enquanto estou a fazer uma ópera, a minha vida resume-se a esse espetáculo e não consigo pensar noutra coisa que não sejam as dificuldades e as facilidades que sinto com a música. Estou constantemente a explorar para ver onde é que posso tirar mais rendimento da minha interpretação. A música acaba por ser uma maneira de estar na vida.

 

Que conselho pode dar aos jovens cantores que estão a iniciar as suas carreiras?

 

O que posso aconselhar aos jovens cantores que estão a começar a afirmar-se é que nunca percam de vista o essencial. Além do que é trivial para ser bom em qualquer coisa — como perseverança e insistência, que se aplicam a qualquer profissão — é fundamental escolherem um repertório com o qual se sintam confortáveis. A longevidade da carreira depende muito disso. Veja-se o caso de Alfredo Kraus, que cantou até aos 70 e tal anos. No meu caso, continuo a cantar aos 79. Além disso, é importante frequentar masterclasses porque há sempre algo de novo para se aprender. Por exemplo, quando fiz o meu primeiro papel principal, recebi uma crítica do João de Freitas Branco que me deixou vários anos intrigado. Ele elogiou a chegada de uma nova voz ao São Carlos, especialmente de um tenor, que são raros, e afirmou que eu tinha cantado bem, mas também que a minha voz não estava alinhada em toda a sua extensão. Na altura, não entendi o que isso significava. Passados 15 anos, participei numa masterclass com a cantora Regina Resnik, uma grande meio-soprano norte americana e das melhores intérpretes de Carmen de Bizet. Ouviu-me cantar e disse: "Você não tem a voz alinhada em toda a extensão." Finalmente entendi o que João de Freitas Branco queria dizer. Ela explicou-me que os meus "E" eram muito abertos e estridentes, e que os "l" quase não se ouviam. Disse-me que o canto é feito à base de vogais, e que as consoantes servem apenas para dar força às vogais, que é o som que realmente sai. Os italianos, por exemplo, têm as consoantes duplas (ou dobradas), que ajudam a travar a vogal e a projetar o som, como no caso de “bello”, onde o “l” é prolongado. Fiz muitos exercícios com ela para tentar alinhar o “l” no mesmo local onde estavam, por exemplo, os "U", que eu já tinha bem localizado. Aos poucos, comecei a perceber que o "l” não precisava ser o que eu pensava. Portanto, a escolha do repertório é muito importante, assim como a escolha do professor. Se o cantor sentir que não está a evoluir, é melhor mudar de professor, sem que isso tenha que ofender alguém., sem ofensa para ninguém.


Joana Patacas - Assessoria de Comunicação e de Conteúdos

Fotografia de Carlos Guilherme Lúcia Crespo e Pedro Catarino


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